É possível fixar multas administrativas em múltiplos do salário mínimo, uma vez que não há impedimento para que ele seja usado como mera referência, sem indexação econômica, conforme tese estabelecida pela maioria do Plenário do Supremo Tribunal Federal.
O julgamento da matéria está sendo feito em sessão virtual e está marcado para terminar no dia 3 de novembro. O caso tem repercussão geral, ou seja, a tese estabelecida servirá para situações semelhantes nas demais instâncias da Justiça.
Contexto
O recurso levado ao STF diz respeito a multas administrativas aplicadas a empresas e estabelecimentos que exploram atividades farmacêuticas sem comprovar que elas são exercidas por profissionais habilitados e registrados nos Conselhos Federal e Regionais de Farmácia. A Lei 5.724/1971 estabeleceu que o valor dessas multas deve ser de um a três salários mínimos.
Mas o Tribunal Regional Federal da 3ª Região extinguiu uma execução fiscal movida pelo Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo (CRF-SP) contra uma drogaria e anulou as multas aplicadas.
Na ocasião, os desembargadores apontaram que o inciso IV do artigo 7º da Constituição proíbe a vinculação do salário mínimo “para qualquer fim”. Também lembraram que o próprio STF tem diversos precedentes contrários à fixação dessas multas administrativas em múltiplos do salário mínimo.
O CRF-SP recorreu, alegando que a regra da Constituição se restringe às situações em que o salário mínimo é usado como indexador econômico — ou seja, quando o valor de algo é vinculado de forma automática às variações do mínimo. No caso das multas administrativas, ele seria apenas uma referência.
Voto do relator
Para o ministro Gilmar Mendes, relator do caso, estabelecer a multa administrativa em múltiplos do salário mínimo não viola a regra da Constituição. Até o momento, ele foi acompanhado pelos ministros Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Flávio Dino, Kassio Nunes Marques e Edson Fachin.
Embora o STF já tenha reconhecido a inconstitucionalidade da regra da lei de 1971 em algumas oportunidades, Gilmar apontou que essa posição não é unânime. Em alguns casos, a corte já validou o uso do salário mínimo como mera referência, pois a regra da Constituição busca impedir apenas seu uso como “fator de indexação econômica”.
O Supremo já validou, por exemplo, um trecho (hoje revogado) do Código de Processo Penal (CPP) que usava o salário mínimo como parâmetro para multas por abandono de processo (ADI 4.398).
Em outra ocasião, validou o capital social mínimo de cem salários mínimos para a constituição de empresa individual de responsabilidade limitada (Eireli).
Os ministros também já permitiram que pensões alimentícias sejam estabelecidas com base no salário mínimo. Outro precedente autorizou o uso de múltiplos do mínimo como base para o piso salarial de médicos, dentistas e seus respectivos auxiliares.
Além disso, a própria legislação brasileira tem diversas regras que utilizam o salário mínimo como critério para fixar multas e outras obrigações. O Código Penal, por exemplo, prevê prestação pecuniária de um a 360 salários mínimos como pena alternativa e estabelece o valor do dia-multa como uma fração do salário mínimo vigente à época dos fatos.
O CPP usa o salário mínimo para fixar multas em caso de recusa injustificada ao serviço de júri. Já o Código de Processo Civil traz múltiplos do mínimo ao fixar as multas por descumprimento de decisões, litigância de má-fé e embargos de declaração protelatórios.
“Diferentemente de verbas remuneratórias, a aplicação de multas não tem sequer o potencial de gerar efeito de indexação econômica”, apontou o relator.
Isso porque tais sanções são eventuais e vinculadas à violação de obrigações: “Essa natureza episódica impede que a multa possa servir de referencial para o reajuste de outros valores ou para a correção monetária periódica”.
O valor da multa também não tem relação direta com o poder de compra dos trabalhadores, como ocorre com as verbas remuneratórias. “Não se vislumbra qualquer efeito indexador da aplicação de multa administrativa”, concluiu o magistrado.
Divergência
O ministro Dias Toffoli divergiu do relator, pois considerou inconstitucional a cobrança de multas calculadas com base no salário mínimo. A ministra Cármen Lúcia acompanhou essa posição.
Segundo Toffoli, apesar da “oscilação jurisprudencial”, o STF nunca validou o critério do salário mínimo como base de cálculo para outras verbas ou como indexador econômico, exceto nas hipóteses permitidas pela Constituição.
“A jurisprudência se solidificou no sentido da impossibilidade da adoção do salário mínimo como fator genérico de indexação para quaisquer verbas, cálculos ou reajustes de obrigações de natureza não alimentar.”
O magistrado apontou que a jurisprudência do Supremo só admite a vinculação de parcelas ao salário mínimo quando elas dizem respeito à preservação das garantias e dos direitos sociais do trabalhador, para suprir suas necessidades básicas. As penalidades administrativas não se enquadram nessa categoria.
De acordo com ele, o uso do salário mínimo como parâmetro para aplicação das multas administrativas do CRF representa “desvio de finalidade da função social do instituto”. Além disso, o reajuste destoa dos índices oficiais da inflação de cada período, o que gera “um ônus desproporcional” para quem é fiscalizado.
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ARE 1.409.059
José Higídio – Repórter da revista Consultor Jurídico.
Fonte: Revista Consultor Jurídico – 30/10/2025