Código de Aeronáutica deve prevalecer sobre CDC em processos contra companhias aéreas

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As leis específicas de aviação, como o Código Brasileiro de Aeronáutica, devem prevalecer no julgamento de processos contra companhias aéreas em casos de atrasos e cancelamentos por força maior ou caso fortuito. Isso porque o CBA não desampara o consumidor, mas limita o dever de indenizar quando a causa da alteração no voo independe da vontade do transportador.

Essa é a percepção da maioria dos advogados entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico. Na última quarta-feira (26/11), o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, determinou a suspensão de todos os processos contra aéreas que discutem atrasos ou cancelamentos por motivos de caso fortuito ou força maior (questões climáticas, por exemplo).

A decisão foi motivada por um recurso da Azul contra um acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que condenou a empresa a indenizar um passageiro com base no Código de Defesa do Consumidor.

De acordo com o CDC, o dano moral é presumido quando há falha na prestação do serviço, ou seja, o consumidor não precisa comprovar que houve prejuízo para ser reparado. A companhia alegou que não há uniformidade nas decisões que tratam do tema: alguns magistrados fundamentam-se no CBA e outros no CDC, o que gera tratamento desigual em casos idênticos.

Toffoli reconheceu que o tema deve ser uniformizado e converteu o recurso no Tema 1.417 de repercussão geral, que deverá ser discutido em até um ano.

Padrão internacional

Para a maior parte dos especialistas, o CBA se alinha às normas internacionais que regulam o transporte aéreo e, ao mesmo tempo, não deixa de amparar o consumidor. A norma, assim como o CDC, prevê a possibilidade de responsabilização do transportador aéreo em caso de dano causado a pessoa ou carga.

A diferença é que, segundo o CBA, a culpa do transportador deve ser comprovada para que o dano moral seja caracterizado. “Ambos os códigos preveem a possibilidade de responsabilização extrapatrimonial da companhia aérea em caso de dano causado a pessoa ou carga. A diferença é que o CDC, no artigo 14, afasta a necessidade de existência de culpa do transportador para caracterização da responsabilidade de indenizar o passageiro, o que claramente não é razoável. Logo, a previsão legal mais justa entre as figuras do consumidor e do transportador aéreo é, sem dúvida, o CBA”, diz o advogado Marconi D’Arce, da área de contencioso cível do escritório Queiroz Cavalcanti Advocacia.

A civilista Débora Quintas, do De Goeye Advogados Associados, acrescenta que uma interpretação correta do tema deveria combinar a Convenção de Montreal com o CBA. A norma internacional, em sua visão, garante uniformidade e previsibilidade, enquanto o CBA complementa sua lógica com as especificidades do Brasil.

“Vale lembrar que a prevalência do tratado internacional já foi discutida no Tema 210 do STF, mas acabou sendo bastante flexibilizada”, complementa.

Os especialistas também afirmam que a Resolução 400/2016 da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) já garante assistência material — como alimentação, hospedagem, comunicação e acomodação — em casos de atraso ou cancelamento por qualquer motivo. Na prática, caso prevaleça o CBA, o que pode acontecer é a mitigação das indenizações, segundo o advogado Arthur Bobsin.

Relação de consumo

Por outro lado, há quem defenda que o CDC deve prevalecer, independentemente do que causou o atraso, já que a relação entre as aéreas e os passageiros é de consumo. É o caso dos advogados Eduardo Esteves e Luan Felipe Barbosa. Para eles, o código é a norma que se alinha melhor à Constituição.

“A proteção ao consumidor é um direito fundamental e um princípio da ordem econômica. O CBA e as convenções internacionais são essenciais para regular aspectos técnicos da aviação e as relações entre os Estados, mas não para reger a relação consumerista”, diz Barbosa.

Em sua visão, afastar a aplicação do CDC cria uma exceção perigosa e deixa o usuário desamparado em um setor com histórico de falhas. O código garante que os passageiros sejam ressarcidos por falhas na prestação do serviço, como overbooking (prática de vender mais passagens do que o número de assentos disponíveis), extravio de bagagem, cobranças indevidas e cancelamentos por motivos operacionais.

Isso mantém o Brasil alinhado a um alto padrão de defesa do consumidor, de acordo com Barbosa. Para Esteves, a relação de consumo é clara. “O lobby das companhias aéreas é muito forte, então estão fazendo uma manobra para se utilizarem de uma lei completamente antiquada para lhes favorecer.”

Enxugamento das ações

Mesmo que o STF entenda pela prevalência do CBA, não há como garantir que isso reduzirá o volume de processos ajuizados contra as companhias aéreas. Para Marconi D’Arce, não haverá qualquer mudança, seja qual for a decisão final do Supremo.

Ele explica que ações sobre atrasos ou cancelamentos de voos estão entre as mais numerosas do Judiciário brasileiro. O julgamento do recurso, ademais, será prioritário e deve ocorrer em até um ano. “Tempo este que, levando em consideração a média do curso dos processos no Brasil, é curto. Assim, tal medida aparentemente não terá efeito de impedir que consumidores acionem as companhias.”

Já Luan Felipe Barbosa afirma que haverá redução da litigância de qualquer forma. Se o entendimento do Supremo indicar o uso do CBA como legislação para responsabilização em casos fortuitos, os consumidores se sentirão desestimulados a buscar seus direitos. E se o CDC prevalecer, a redução pode ocorrer em médio e longo prazos, pois as aéreas serão forçadas a investir na qualidade dos serviços e na resolução extrajudicial para evitar condenações.

Para Débora Quintas, o predomínio do CBA deve levar à redução no volume de ações, a começar pela suspensão que já está em vigor. “A suspensão nacional determinada pelo STF já freia a entrada de novas ações. Se prevalecer a aplicação da Convenção de Montreal e do CBA reformado, isso tende a desestimular demandas oportunistas.”

“O ponto central é que não se trata de reduzir o acesso do consumidor ao Judiciário, mas de corrigir distorções estruturais que alimentam a litigância predatória no Brasil”, diz a advogada Julia Lins, que teve um artigo sobre o tema citado na decisão do ministro Dias Toffoli.

Clique aqui para ler a decisão de Dias Toffoli

Martina Colafemina – Repórter da revista Consultor Jurídico

Fonte: Revista Consultor Jurídico – 01/12/2025


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