Festa no interior

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Araçatuba, no interior de São Paulo: a pujança das cidades médias expande a fronteira do consumo


Por Fabiane Stefano e Roberta Paduan

 

Encravada no interior do Rio Grande do Norte, a cidade de Mossoró tem 235 000 habitantes e uma economia movida pela exportação de frutas, pela indústria de sal e pelos pequenos campos de petróleo descobertos e explorados por cerca de 1 400 empreendedores da cidade. Mossoró tem hoje a maior produção de petróleo em terra do país — e, em tempos de cotação recorde e de demanda em alta, isso tem sido uma bênção para a cidade. Nos últimos anos, o progresso se manifestou sob a forma de crescimento dos empregos, da renda e da ascensão da classe média local. Desde o início desta década, o PIB de Mossoró e a renda média de seus habitantes duplicaram. A criação de empregos formais triplicou. E onde há renda há oportunidade de negócios. Há um ano foi inaugurado o primeiro shopping center da região. O Mossoró West Shopping tem 900 funcionários, distribuídos em 73 lojas, entre elas unidades de grandes redes, como Americanas, Marisa e Siciliano. “Havia uma grande demanda reprimida desse tipo de comércio na cidade”, diz o paulista João Graciliano, superintendente do Mossoró West. “Nosso movimento neste ano já é o dobro do ano passado.” Há um mês, o Atacadão, braço do grupo Carrefour que atende tanto comerciantes quanto o consumidor final, abriu as portas na cidade, criando outros 350 postos de trabalho. Um hotel Ibis está sendo erguido no centro de Mossoró pela rede francesa Accor. Perto dali, a construção de prédios residenciais ajuda a dar idéia da movimentação no mercado imobiliário.


A ascensão de Mossoró é parte de um fenômeno econômico mais amplo, com reflexos diretos no ambiente de negócios: o crescimento do mercado de consumo no interior do Brasil. Fora das nove maiores capitais, moram sete de cada dez brasileiros, que já respondem por 61% da demanda de alimentos, bebidas e artigos de higiene e limpeza produzidos em massa no país — e, mantido o ciclo virtuoso da economia e o vigor de setores como oagronegócio e a mineração, devem consumir cada vez mais. “Todos os nossos projetos atuais são em cidades do interior ou em capitais com perfil de cidade média, ou seja, os mercados emergentes”, afirma Adriana Gribel, sócia da mineira TencoCBL, administradora de dez shopping centers, incluindo o de Mossoró. “Muitas cidades de menor porte subiram de patamar de consumo, mas ainda não foram atendidas por um varejo compatível com a nova demanda.” Essa percepção vem expandindo as fronteiras do setor imobiliário: há 15 anos, as capitais concentravam 85% dos shoppings brasileiros. Hoje, abrigam 55% deles. No início deste ano, a incorporadora Scopel, especializada em loteamentos urbanos para a classe C, experimentou em Paulínia, cidade próxima de Campinas, algo que nunca tinha ocorrido em suas quatro décadas de história. “Vendemos os 600 lotes de um empreendimento em apenas um dia”, diz Eduardo Scopel, sócio da empresa. Nos próximos dois anos, a Scopel deve lançar, em cidades do interior, 50 000 terrenos — o mesmo número que vendeu em 40 anos.


O poder de consumo do Brasil emergente


Guardadas todas as proporções, cidades como Mossoró estão para o Brasil assim como os países emergentes estão para o mundo. Na prática, as grandes capitais continuam a ser os mercados mais ricos, em que os consumidores contam com renda mais alta. Nenhuma grande empresa de produtos de massa pode desprezar cidades como São Paulo, Rio de Janeiro ou Salvador. Mas a estabilização e o crescimento econômico dos últimos anos ajudaram a distribuir a riqueza pelo país. Um estudo da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro, a Firjan, analisou dados sobre educação, saúde, emprego e renda para calcular o índice de desenvolvimento dos quase 5 600 municípios brasileiros. O resultado: 82 das 100 cidades com os melhores índices têm menos de 300 000 habitantes. “É um sinal claro de desconcentração econômica, o que também é um indicador de progresso do país”, afirma Luciana de Sá, diretora de desenvolvimento econômico da Firjan. Outro estudo, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Ipea, mostra que as cidades médias, em que a população varia de 100 000 a 500 000 habitantes, estão crescendo mais que as metrópoles. De 2002 a 2005, o PIB nas 236 cidades que compõem esse universo aumentou à taxa de 5,3% por ano, enquanto as cidades com mais de meio milhão de habitantes cresceram à média de 4,6% e as cidades pequenas, com população abaixo de 100 000, cresceram 4,3%. Também foram as cidades médias as que mantiveram maior taxa de aumento populacional e, ainda assim, lideram em crescimento da renda per capita. “Essas cidades têm desempenhado um papel estratégico na malha urbana brasileira, criando centros regionais ou sub-regionais”, diz Diana Motta, coordenadora de desenvolvimento urbano do Ipea.


O progresso do interior se materializa em consumo de todo tipo. Os lucros da recém-colhida safra 2008 já se transformaram em uma novíssima picape Mitsubishi L200 na garagem do gaúcho Eurydes Ceni, morador de Sinop, no norte de Mato Grosso, há 23 anos. Aos 70 anos de idade, Ceni planta soja, arroz e milho nessa que é uma das mais novas cidades emergentes do campo brasileiro. À beira da rodovia BR-163, Sinop foi fundada há pouco mais de 30 anos no lastro do avanço da soja no cerrado. Tem hoje 105 000 habitantes, cuja renda vem principalmente de indústrias e serviços ligados ao agronegócio. Nos últimos oito anos, o número de empresas instaladas na cidade mais que dobrou, passando para 10 100 indústrias e pontos comerciais. Sinop é um ímã para revendedoras de carros, especialmente as que exibem picapes. Até maio, a cidade registrava uma frota de 46 000 veículos — seu índice de um automóvel para cada 2,2 habitantes é superior à média de São Paulo e de Paris.


O consumo cresce no interior do Brasil — mas a melhor notícia para as empresas é que o potencial ainda é imenso. Hoje, 132 milhões de pessoas moram fora das regiões metropolitanas — o equivalente às populações somadas da Itália e da Alemanha. Segundo um estudo da LatinPanel, empresa de pesquisa de mercado que acompanha semanalmente 8 000 domicílios espalhados pelo país, apenas 21% das residências no interior possuem computador e 27% contam com máquina de lavar roupa. O mercado de serviços, em muitos casos, é quase inexplorado: a TV por assinatura chega a 4% das casas fora dos grandes centros. O comércio é formado por centenas de milhares de pequenos varejistas. Por um lado, isso é vantagem para a indústria, que pode fugir das pressões para a redução de margens exercidas por grandes redes. Por outro, significa oportunidade de expansão, lucros maiores e consolidação do setor. A catarinense Portobello, fabricante de revestimento cerâmico, deve instalar 60 lojas em cidades do interior de diversos estados até o final de 2009. “A rentabilidade no interior é melhor porque a concorrência ainda é menor”, diz Dimitrios Markakis, presidente da rede de lojas de material de construção Dicico. Das 110 lojas que Markakis pretende operar dentro de dois anos, 70 estarão em cidades do interior de São Paulo, como Botucatu, Lins e Jaú. Nesses mercados, sua margem bruta é de 31%, enquanto na capital a média é de 27%.


Para uma empresa acostumada ao mercado brasileiro, conquistar o consumidor do interior parece infinitamente mais fácil do que atrair compradores na China, na Índia ou na Rússia. Mas é um equívoco crer que todos os brasileiros têm hábitos de consumo idênticos, independentemente da geografia. Isso fica evidente ao se analisar como o consumidor do interior lida com o crédito. A pesquisa da LatinPanel mostra que 29% dos pagamentos a prazo são feitos com a arcaica caderneta. O uso de cartões de crédito e cartões de lojas ainda é exceção. “O consumidor de pequenas e médias cidades é mais conservador”, diz Ana Cláudia Fioratti, diretora da LatinPanel. “Sua renda é menor que a do consumidor da cidade, mas ele também gasta menos e poupa mais.”


Parte das empresas que seguem rumo às entranhas do país já percebeu as adaptações que precisa fazer na operação. No caso da Portobello, o plano de expansão no interior foi iniciado há dois anos. As primeiras 25 lojas inauguradas, embora menores, tinham o mesmo modelo das unidades de cidades como São Paulo — basicamente um showroom, onde clientes conhecem os produtos da marca e os encomendam. O tempo mostrou que o consumidor das cidades menores tem outras vontades e características. “Ele prefere pagar à vista e quer levar a mercadoria na hora”, diz Juarez Leão, diretor da Portobello Shop, braço varejista da empresa. Para se adaptar ao mercado, a empresa criou o Empório Portobello, uma franquia com estoque, área de liquidação e visual mais popular. “No interior, o hábito de consumo é mais simples, e o nosso modelo tradicional era visto como elitista”, diz Leão. Nos planos da Portobello para os próximos dois anos, Sinop e Mossoró estão entre as candidatas mais fortes a receber Empórios.


Em Araçatuba, a 527 quilômetros da capital paulista, a rede de hotéis Accor registrou 77% de ocupação três meses após a inauguração de um Ibis, aberto em fevereiro. “Conseguimos uma taxa que esperávamos alcançar em três anos”, diz Abel Castro, diretor de desenvolvimento da empresa. O movimento espelha a nova dinâmica da cidade de 180 000 habitantes, situada numa região tradicional na pecuária e incluída na recente expansão das fronteiras das usinas de açúcar e álcool. A quase totalidade dos hóspedes do Ibis de Araçatuba é de gente que está a trabalho, principalmente representantes de empresas. “Terças e quartas são dias em que não há quarto vago”, diz Luis Fernando Myamura, gerente do hotel. Estimulada pelo retorno nas cidades médias, a Accor desenvolve um novo formato de hotéis com no máximo 100 apartamentos, metade do tamanho convencional da bandeira Ibis. Nos próximos anos, a empresa deve fincar uma centena desses hotéis em cidades do interior — todas com pelo menos 150 000 habitantes.


É inevitável que a expansão do mercado rumo ao interior atraia consigo a produção. Em um país com as dimensões e os problemas logísticos do Brasil, produzir perto de onde se vende, muitas vezes, é uma grande vantagem competitiva. As empresas de cimento estão indo para o Nordeste e o Centro-Oeste, regiões onde o mercado imobiliário tomou impulso. No ano passado, a Nestlé inaugurou uma fábrica de alimentos em Feira de Santana, no interior baiano. Com o crescimento do agronegócio, a rede de fast food Habib’s se prepara para implantar centros regionais de produção de suas esfihas e quibes. Eles atenderão grupos de cidades, onde será implantada pelo menos meia dúzia de lojas. “A estratégia para as lojas menores em cidades do interior nos ajudará a entrar em capitais como Cuiabá e Campo Grande”, diz João Augusto Penna, diretor de expansão da Habib’s. Os enormes avanços pelos quais o Brasil vem passando — fruto da estabilidade e do aumento da competitividade — transformam o interior em um mercado respeitável. E, para as empresas que querem ultrapassar fronteiras, ele pode ser o caminho mais rápido.


Veículo: Revista Exame


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