Pobres já gastam 5% mais que ricos

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Estudo mostra avanço do consumo das classes D e E do Norte e Nordeste em relação às classes A e B do Sudeste

 

Os pobres do Norte e Nordeste estão consumindo mais que os ricos do Sudeste. Nos últimos 12 meses até setembro deste ano, as classes D e E das regiões Norte e Nordeste do País gastaram R$ 8,8 bilhões com uma cesta de alimentos, produtos de higiene pessoal e limpeza. Essa cifra é 5% maior que a desembolsada pelas camadas A e B (R$ 8,4 bilhões) que vivem no Sudeste do País no mesmo período com esses itens, revela estudo exclusivo da LatinPanel, maior empresa de pesquisa domiciliar da América Latina.

 

Em igual período do ano passado, a situação era exatamente inversa: o gasto das camadas que compõem a base da pirâmide social no Norte e Nordeste com bens não duráveis havia sido 5% inferior ao das classes A e B do Sudeste. "Houve uma reversão", afirma Christine Pereira, diretora da empresa e responsável pela pesquisa.

 

Ela atribui a mudança a fatores conjunturais. Inflação em baixa, que dá mais poder de compra ao consumidor, ganhos de renda dos trabalhadores que recebem salário mínimo e o fato de a crise não ter afetado as camadas de menor renda explicam, segundo Christine, o avanço do consumo dos bens não duráveis pelos mais pobres. Os dados da pesquisa foram obtidos a partir de visitas semanais a 8,2 mil domicílios para auditar o consumo de 65 categorias de produtos.

 

Embora em maior número, as famílias das classes D e E do Norte e do Nordeste têm renda agregada bem menor que a das famílias das classes A e B do Sudeste. No Norte e no Nordeste, há 6,9 milhões de lares que recebem até quatro salários mínimos (R$ 1.860) por mês, o que corresponde a 40% do total de famílias das classes D e E do País. Já as classes A e B somam 4,9 milhões de domicílios no Sudeste ou 45% dos lares desse estrato social do Brasil. Essas famílias têm renda mensal superior a dez salários mínimos (R$ 4.650).

 

Para o economista chefe da LCA Consultores, Bráulio Borges, boa parte do avanço do consumo dos mais pobres se deve ao aumento real do salário mínimo de 5,7% concedido neste ano. "O salário mínimo pesa muito nas regiões Norte e Nordeste", diz.

 

Nas contas dele, a massa real de renda dos ocupados, pensionistas da Previdência e também beneficiários do Bolsa Família cresceu 7,7% no Norte e Nordeste no primeiro semestre deste ano em relação a igual período de 2008. O acréscimo é mais que o dobro do registrado para essa população que vive no Sudeste do País, que foi de 3,1% nas mesmas bases de comparação.

 

Além disso, Borges ressalta que a inflação dos mais pobres, que ganham até cinco salários mínimos (R$ 2.325), medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), perdeu fôlego este ano. Após fechar 2008 com alta de 6,5%, a maior taxa desde 2003, o INPC deve encerrar 2009 com aumento de 4,5%, prevê.

 


Classes D e E viram prioridade para empresas

 

Consumidor de renda mais baixa passa a ser mais atraente para o mercado do que o da classe C

 

A classe C, que até pouco tempo atrás era a mais cortejada pela indústria e pelo comércio, começa a perder a atratividade para as camadas inferiores, as classes D e E, que ainda têm pouco acesso ao crediário e a renda menos comprometida com outras despesas, como internet, TV a cabo e prestações do crédito consignado.

 

Segundo pesquisa da LatinPanel, a classe C das regiões Norte e Nordeste, que tem renda mensal familiar entre quatro (R$ 1.860) e dez salários mínimos (R$ 4.650) gastou nos últimos 12 meses até setembro deste ano R$ 5,46 bilhões com alimentos, bebidas e artigos de higiene e limpeza. Essa cifra é 35% menor que a desembolsada com esses mesmos produtos pelas camadas A e B da população que vive na região Sudeste.

 

"As classes D e E passaram a ser olhadas com mais carinho pelos empresários porque estão saindo do estágio de consumo de subsistência", afirma o economista chefe da LCA Consultores, Bráulio Borges.

 

Isael Pinto, presidente da General Brands, que produz sucos em pó e pronto para beber, já detectou o potencial desse novo mercado. Faz um mês que a companhia, que é dona da marca Camp, lançou um novo suco em pó. Batizado de Fructos Plus, o suco é voltado para a baixa renda do Norte e Nordeste.

 

O pacotinho de 20 gramas do novo suco em pó custa entre R$ 0,39 e R$ 0,45 no varejo e rende dois litros do produto já adoçado. O saquinho de 35 gramas da marca Camp, mais voltada para as classes B e C, sai por R$ 0,59 no varejo e rende um litro de suco, também adoçado.

 

"Idealizei esse novo produto quando estava numa vendinha numa cidade do interior do Maranhão, num dia em que a temperatura passava de 35 graus", diz o empresário. Ele conta que observou uma senhora pobre fazendo as contas de quanto iria gastar para comprar suco para os seis filhos. "Percebi que havia uma oportunidade de mercado para um suco mais barato e com maior rendimento."

 

O resultado dessa percepção do empresário já se traduz em números. No primeiro mês, já produziu e vendeu o pó para fazer o equivalente a 7,2 milhões de litros de suco. "O resultado nos surpreendeu. Já penso em montar uma fábrica no Nordeste", diz Pinto. Ele conta que o desempenho das vendas de todos os produtos da companhia para as classes De E no Nordeste é três vezes superior ao registrado nas classes A e B no Sudeste. Além dos sucos, ele fabrica chiclete e outros confeitos.

 

A Perfetti Van Melle, fabricante da bala Mentos, é outra indústria que acaba de colocar no mercado produtos feitos sob medida para as classes D e E do Nordeste. Tatiana Checchia Gonçalves, gerente da marca Mentos, conta que lançou quatro sabores da bala em embalagens menores: no lugar de 14 unidades são 11, o que reduz em 27% o preço do produto.

 

Antes mesmo de desenhar produtos com características específicas para a região, a empresa já vem colhendo bons resultados de vendas no Nordeste. No bimestre agosto-setembro, as vendas de dropes, pastilhas e caramelos da companhia no Nordeste cresceram 46% em valor na comparação com igual período do ano passado, enquanto na região Sudeste o acréscimo foi de 8%, nas mesmas bases de comparação.

 

Christine Pereira, diretora da LatinPanel e responsável pela pesquisa de consumo domiciliar, ressalta que há muitas oportunidades na região Norte e Nordeste para as indústrias de alimentos e produtos de higiene e limpeza. Ela cita como exemplo cinco produtos que ainda têm pouca presença na cesta de compras da população local de menor renda em relação ao restante do País. São eles: creme de leite, leite condensado, maionese, molho de tomate e amaciante de roupas.

 


Cada R$ 1 a mais vai para alimentação

 

Com mais dinheiro no bolso, a baixa renda, que tem enormes lacunas no consumo de itens básicos, vai direto às compras, especialmente de alimentos, quando tem R$ 1 extra. Tanto é que o gasto com comida pesa 30% no Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) do IBGE, que mede a inflação das famílias mais pobres, com renda de até cinco mínimos.

 

Já no Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) do IBGE, que apura o custo de vida das famílias com renda de até 40 salários mínimos, o desembolso com alimentação representa 22% do indicador.

 

"O consumo de bens das classes A e B é mais maduro", observa o economista chefe da LCA Consultores, Bráulio Borges. Isso significa que, quando há ganho de renda nos estratos mais abastados da população que já têm as necessidades básicas supridas, crescem os gastos com serviços. "Essa população viaja mais e come mais fora de casa", exemplifica.

 

Para o coordenador do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Marcelo Neri, os dados da LatinPanel são consistentes com os resultados da última pesquisa de estratificação das classes sociais no País feita pela FGV. Nos últimos 12 meses encerrados em julho deste ano, a parcela da população com renda mensal superior a 3,5 salários mínimos nas seis regiões metropolitanas cresceu mais no Nordeste do que no Sudeste, sendo mais forte o avanço nas periferias de Recife (PE) e Salvador (BA), em detrimento das capitais. "O Nordeste está melhor que o Sudeste e as periferias que as capitais", afirma Neri.

 

Ele destaca, porém, que esse avanço na escala social não é só resultado de programas de benefícios do governo. "A renda do trabalho também está crescendo no Nordeste", diz o economista da FGV. Entre 2003 e 2008, a renda do trabalho e a renda total no Nordeste aumentaram coincidentemente 7,3% ao ano, enquanto no mesmo período no País a renda como um todo aumentou 5,3% ao ano e a renda do trabalho, 5,1% ao ano. O fato de esse ganho de renda não ser apenas fruto de benefícios sociais, mas da renda do trabalho, dá sustentabilidade ao processo, observa Neri.

 

De olho na continuidade desse movimento de ascensão das classes D e E no mercado de consumo, o Walmart, o maior varejista do mundo e que atua no Brasil nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste, concentrou neste ano os investimentos no Nordeste. Das cerca de 100 lojas abertas em 2009, a maior parte está localizada nessa região.

 

"A base da pirâmide social vive hoje um momento especial", afirma o vice-presidente executivo da rede no Brasil, Marcos Ambrosano. Segundo ele, o apetite de consumo das classes D e E não está restrito a alimentos. "Está crescendo expressivamente neste ano a venda de computadores nas lojas Todo Dia." A bandeira Todo Dia são lojas de desconto voltadas para a baixa renda.

 

Consumidores do Norte e Nordeste vão 17 vezes por mês ao supermercado, três vezes mais que a média

 

Os consumidores do Norte e Nordeste do País vão 17 vezes por mês ao supermercado, três vezes a mais que a média dos brasileiros, aponta a pesquisa da LatinPanel. A maior frequência de compras tem motivos: aproveitar as promoções e fazer o dinheiro render mais.

 

Severino Francisco da Silva, de 69 anos, ascensorista aposentado que vive no Recife (PE), vai ao supermercado pelo menos três vezes na semana. Prefere comprar "picado", levando o que falta em casa, e aproveitando as ofertas. Ele trabalha como porteiro - noite sim, noite não - e sempre observa o que está faltando.

 

Com um passado sofrido e marcado pela necessidade, quando trabalhava como cortador de cana em Macaparana, na Zona da Mata, gasta a maior parte da renda familiar, em torno dos R$ 1,6 mil, no supermercado. "Gosto de ver a cozinha sortida."

 

Na quinta-feira, ele estava no supermercado Todo Dia, no bairro popular de Afogados, onde mora, para comprar leite em pó integral, que estava em oferta. "Onde tiver promoção, vou atrás."

 

Segundo Severino, que também deixa um porcentual razoável da renda na farmácia, tudo começou a melhorar quando veio para a cidade (Recife), em 1986. Arranjou logo um emprego, conseguiu comprar uma moradia e os 8 filhos vivos, dos 15 que teve, foram se ajeitando. Hoje tem prazer em ter fartura. Até porque "casa de pai é coisa boa" e sempre tem um filho chegando para comer.

 

Como Severino, Glaucineide Severina de Souza, de 27 anos, dona de casa e mãe de quatro filhos, também aproveitou a oferta do leite em pó na última quinta-feira. Levou várias "bolsas", como chama os pacotes do produto, que segundo ela, é tão imprescindível como o feijão e o arroz. Com quatro filhos, ela vive do salário do marido, em torno de R$ 600,00, e recentemente passou a receber o benefício do Bolsa-Família, que lhe acrescenta R$ 134,00 mensais. "Lutei quatro anos para conseguir", diz ela que também incorporou à sua lista de compras novos itens, como catchup e maionese. Nos dias em que a geladeira e a despensa estão mais vazias, ela costuma usar catchup puro no pão, como substituto de manteiga.

 

PERCEPÇÃO

 

Os consumidores das classes A e B do Sudeste perceberam o avanço no padrão de consumo da população de menor renda, enquanto as suas compras ficaram praticamente estagnadas. Ana Maria Lacerda Teixeira, de 60 anos, casada e com dois filhos, diz que manteve o padrão de compras, mas notou que a vida da faxineira melhorou. O valor da diária subiu de R$ 50 para R$ 60.

 

O economista Celso Bugni, de 52 anos, observou que a sua empregada melhorou o padrão
de vida. "Ela alugou uma casa melhor e comprou vários eletrodomésticos." Além da inflação baixa, Bugni também colaborou para a ascensão com um aumento de 10% no salário. "Acho bom que ela tenha melhorado. Diminuiu a desigualdade social."

 

Veículo: O Estado de S.Paulo


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