Champagne: Terremoto não abala a majestade

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Quando se fala em borbulhas a primeira palavra que vem é champagne. O verdadeiro. Embora praticamente se produza espumante em qualquer região do planeta é inegável que a bebida em seu original não perde a majestade. Até pode ser que seu consumo sinta algum abalo diante do atual nebuloso panorama econômico mundial e faça com que alguns migrem para congêneres. Se isso ocorrer será temporário. Aos primeiros sinais de retomada, tudo volta ao normal. 

 

Uma mágica conjunção de fatores contribui para que só o (autêntico) champagne tenha condições de reunir equilíbrio e elegância, suas grandes características. A razão principal desse diferencial chega a desafiar o que se entende como um local ter vocação para produzir bons vinhos. São condições extremas: é a região vinícola mais setentrional da França - está no paralelo 49 -, o que implica em temperaturas médias anuais que mal chegam a 11 graus centígrados, muito baixas para se atingir graus adequados de maturação das uvas. Leve-se em conta ainda que a insolação é de apenas 1650 horas ao ano, contra 1910 da vizinha Borgonha (que cultiva as mesmas castas) e 2070 de Bordeaux, só para buscar exemplos dentro do país. A questão é que não se trata de brancos ou tintos, mas de espumantes e aqui guardar o frescor é fundamental. 

 

Fundamental, mas não suficiente; é preciso ter adequada estrutura para lhe dar equilíbrio. Entra em cena outra particularidade da região: o solo, que parece giz. Característico da região de Champagne, o gesso atinge camadas espessas do seu subsolo, colaborando sobremaneira para compensar as carências climáticas. O gesso, por conseguir absorver 40% de seu volume em água, funciona como regulador hídrico das parreiras, acolhendo o que cai a mais durante o período de chuvas e restituindo no período de seca. Outra vantagem desse solo é a capacidade de armazenar o calor do sol e irradiá-lo gradualmente de tal forma a proporcionar uma maturação regular dos cachos. 

 

Se esse conjunto de fatores faz entender porque o champagne é soberano e inimitável no gênero, até sua "descoberta" a região tinha pouca expressão no cenário vinícola da França, tentando competir sem muito sucesso com a Borgonha em vinhos tintos e experimentando elaborar brancos. As condições climáticas, impedindo boa maturação das uvas, resultavam em vinhos ácidos e pouco alcoólicos, além de invariavelmente bloquearem o processo de fermentação. As borbulhas viriam a se formar mais tarde, com o aumento da temperatura na chegada da primavera - daí a frase "estou bebendo estrelas", atribuída ao monge beneditino Dom Perignon, considerado o "inventor" do champagne. 

 

Ainda que circulem muitas lendas sobre Dom Pérignon, não há dúvida de que foi ele que, entendendo as dificuldades do clima local, abandonou a produção de vinhos tintos desbotados e brancos instáveis, e comandou um trabalho insano a partir da uva pinot noir - posteriormente foi feito o mesmo com a chardonnay e a pinot meunier, que compõem o trio de castas de Champagne. Estudou os melhores vinhedos, introduziu a melhor técnica, e procurou o melhor momento para fazer a colheita, tudo em torno desta uva tinta, que ele vinificava em branco para elaborar o melhor vinho da região. Ao contrário dos outros produtores, misturava uvas de vários vinhedos segundo seu amadurecimento e sabores específicos determinados pelo tipo de solo e de exposição. É o que se entende como "assemblage". Afora as dádivas ofertadas por "mamãe natureza", um dos segredos do sucesso dos champagnes continua sendo a arte e a capacidade de combinar uvas, vinhedos e safras. 

 

Nesse particular entra outra característica da região francesa. Ela é dominada pelas chamadas "maisons de Champagne", negociantes que têm poucos vinhedos próprios - cerca de 10% do total plantado, mas acima de 90% das exportações -, valendo-se da compra de uvas para suprir suas necessidades. Ao contrário, no entanto, do que em geral se passa em qualquer outra zona vinícola região do planeta isso não é pejorativo nem deve ser entendido necessariamente como perda de qualidade. Além de ser necessário ter cacife para arcar com todos os custos de estocagem das garrafas - entre 2,5 anos e 10 anos, o que produtores pequenos têm dificuldade -, o procedimento obedece critérios que definem o estilo de cada casa e mantê-lo é uma arte que exige muita sensibilidade e competência, devido ao infinito número de variáveis: são três uvas diferentes, chardonnay, pinot noir e pinot meunier, e cada uma procede de vários vinhedos, com solos e micro climas distintos, que contribuem com nuances e sutilezas particulares. 

 

Para compor o vinho base, que ganhará as mágicas borbulhas durante um segundo processo de fermentação, o chef de caves (enólogo chefe) de uma maison de Champagne se vê normalmente com 60 ou 70 amostras à sua frente, devendo analisar as características de cada uma e decidir que porcentagens delas darão o perfil que toda marca sempre oferece. Com tanta ciência e tanto trabalho, mais um artesanal, lento e oneroso processo de elaboração, passa a fazer sentido que não haja champagne de preços baixos e que todos atinjam, ao menos, um padrão correto de qualidade. Além do que, a imagem e o prestígio da casa estão diretamente associados à qualidade do produto. 

 


Veículo: Valor Econômico


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