Brunellos são caros, irregulares e nem sempre verdadeiros

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O escândalo envolvendo fraudes nos celebrados Brunello di Montalcino, um dos tintos italianos de maior prestígio internacional, veio à tona durante a última Vinitaly no início de abril deste ano e vem sendo continuadamente alimentado com novos fatos e discussões. Relembrando, o imbróglio diz respeito à suposta utilização de uvas não permitidas pela legislação DOCG local - o vinho tem de ser obrigatoriamente elaborado com 100% de uva sangiovese grosso, ali chamada de brunello -, mas também, o que é pior, à adição de vinhos de mesa do sul da Itália. 

 

A investigação teria começado em fins de 2007, quando, durante verificações de rotina, foram encontradas "receitas" de cortes ilegais com merlot, cabernet sauvignon e syrah, que teriam entrado com 10% a 20% na composição do produto final. Das mais de 100 vinícolas investigadas de início, estariam seriamente implicadas Antinori, Frescobaldi, Argiano e Banfi, nomes de ponta da região, que tiveram a totalidade de sua produção de Brunello 2003 seqüestrada pelas autoridades. De lá para cá, Antinori foi inocentado e Banfi, apesar de ainda não ser oficial, evidências mostram que teria realmente violado as regras.  
 


A utilização de outras variedades, bem como outros produtos - o produtor e autor Monty Waldin, que se propôs a escrever um guia sobre a Toscana em 2004, afirma que conhece uma empresa perto de Siena que vendeu na zona de Brunello concentrado de fruta usado para a produção de geléia (em dinheiro vivo e sem papeis ou comprovantes fiscais) - tem como finalidade, num primeiro momento, adaptar esses vinhos, particularmente tânicos e ácidos, ao paladar do consumidor moderno. 

 

Essas características têm a ver com a casta, mas isso até poderia ser minorado com técnicas mais adequadas no vinhedo, no processo de fermentação e num estágio em carvalho antes do engarrafamento. A questão, no entanto, precede o manejo das vinhas e a vinificação: a superfície plantada cresceu assustadoramente em pouco tempo e boa parte das novas áreas não tem potencial para produzir vinhos de qualidade. Os números: na década de 60 havia cerca de 15 produtores, os vinhedos não passavam de 60 hectares e eram elaboradas ao redor de 150 mil garrafas; hoje há mais de 250 vinícolas, dois mil hectares de vinhas e são engarrafados sete milhões de brunellos por ano. 

 

Cabe ressaltar que nem todos que chegaram depois têm culpa no cartório. Um deles é Angelo Gaja, produtor mais celebrado da Itália, sobretudo pelos seus vinhos do Piemonte, onde nasceu e se consagrou. Mesmo não atingindo na Toscana - tem dois projetos, o Pieve Santa Restituta, em que produz os brunellos Rennina e Sugarille, e o Ca´ Marcanda, na zona próxima de Bolgheri - o mesmo patamar que alcança em Barolo e Barbaresco, Gaja tem um nome a zelar, tendo comprado uma área bem localizada em Montalcino e busca extrair o melhor dos vinhedos. Quando não consegue, prefere vender a granel. Foi o que aconteceu em 2002 e 2003. 

 

A safra de 2003, aliás, foi a que chamou atenção para as falcatruas. Embora a qualidade da colheita tenha sido ruim - o Consorcio (ir)responsável pelos rótulos da região, entretanto, lhe concedeu exageradas quatro estrelas em cinco possíveis - e a quantidade produzida insuficiente para suprir a demanda, deu na vista aparecer vinhos melhores do que se esperava e em volume capaz de atender aos pedidos. Isso só seria possível com uvas de fora. 

 

Imagina-se que esta prática não vem de agora. Ela estaria sendo empregada para melhorar vinhos de vinhedos situados em áreas não privilegiadas, prejudicados ainda por política de rendimento excessivo das parreiras -- o expediente compromete qualquer vinho, no caso do Brunello o problema é mais grave -, e para aumentar o número de garrafas. 

 

Por tudo isso, e pela pressão exercida por algumas vinícolas para mudar a legislação (permitir a utilização de outras castas), o presidente do Consorzio dei Vino Brunello di Montalcino, Francesco Marone Cinzano, renunciou. Marone teve seu vinho, o Col d´Orcia, também investigado, mas ao menos no que se refere a estilo, nem seria necessário: para o bem ou para o mal, seus brunellos seguem um padrão bem tradicional, que ele defende com fervor. 

 

Angelo Gaja escreveu um artigo para o jornal italiano Libero, publicado em setembro e repetido no La Nazione, da Toscana, expressando sua opinião. Elogia os dois lados, faz lá suas críticas - aumento desmedido e não estudado da localização dos vinhedos, a falta de atitude anterior dos interessados em alterar uma legislação tão inflexível. Escreve no final que é a favor das mudanças, mas sem que ninguém perca o direito de utilizar o nome Brunello di Montalcino - os conservadores (que ele chama de artesanais) poderiam, para se diferenciar, colocar a menção 100% sangiovese nos rótulos. Ou seja pode tudo. 

 

Outra faceta do artigo de Angelo Gaja, que também atesta sua veia política, é a capacidade de contar a história da região, dando mérito aos dois lados. Ao contrário de muitas regiões, diz ele, Montalcino tem a graça de ter contado com um líder reconhecido, um fundador, Franco Biondi-Santi, que "estabeleceu e preservou a reputação de Brunello como um vinho aristocrático, com alta qualidade e altos preços". Ao mesmo tempo, segundo ele também, seria impossível entender de que forma o fenômeno Brunello di Montalcino teria explodido sem um líder em termos mercadológicos, caso da Banfi, pertencente à família Marianis, de origem americana. Os Marianis, fortes distribuidores de vinho nos EUA, "levaram para lá o sonho otimista de seus conterrâneos, o espírito de poder-fazer". 

 

Para realçar o papel objetivo da Banfi, Gaja conta que o projeto inicial do grupo era produzir Lambrusco (sim, Lambrusco!) na região. "Com a aprovação dos administradores locais e sindicatos agrícolas, bosques e carvalhos com séculos de idade foram arrancados e morros arrasados; ao invés de sangiovese, 500 hectares de Moscadello foram plantados de forma a produzir um tipo de Lambrusco branco. Tudo parecia destinado ao fracasso. Mas em vez disso, após o fiasco inicial, os Banfi reconheceram os erros e trataram de corrigir. Reconverteram as vinhas, apostando então em Brunello di Montalcino. Ao fazê-lo, eles se tornaram a força motriz da denominação. Eles criaram uma demanda de Brunello di Montalcino no mercado americano - o mais importante de todos em termos de imagem e prestígio -, que se espalhou pelo resto do mundo. Cedo, todos os produtores Brunello se deram conta desta nova era de Brunello di Montalcino e da demanda para o vinho". 

 

Angelo Gaja poderia ter sido mais comedido. É bem verdade que ele é um artista e se valeu de um bom trabalho de marketing para colocar seus vinhos num patamar de preço tão alto. É, a rigor, o fator comum que eles têm com os brunellos. De resto os rótulos com nome Gaja são únicos e de alta qualidade. Brunellos são muitos e irregulares. Mais: a quantidade de ruins é infinitamente superior ao dos bons. Se assim não fosse, esse fiasco não teria existido. 

 

Veículo: Valor Econômico


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