É um retrocesso prever sigilo de processos eletrônicos

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Por Wadih Damous


A implementação do processo eletrônico pelo Poder Judiciário brasileiro caminha a passos largos e, com ele, a esperança de um processo mais célere e efetivo.


Em artigo anterior publicado neste site, alertamos para a necessidade de atenção a três aspectos, a fim de que o processo eletrônico não se revele um “tiro pela culatra”. Foram eles: (i) a necessidade de unificação dos sistemas, preferencialmente em torno do PJe, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça; (ii) a necessidade de eliminar barreiras tecnológicas, tais como incompatibilidade de sistemas operacionais dos computadores pessoais com os sistemas dos tribunais; (iii) o aumento do número de juízes, para dar conta do natural deslocamento do volume de trabalho do cartório para o gabinete.


Esses aspectos práticos nos parecem essenciais para o sucesso do Processo Eletrônico. Mas há outros, mais estritamente ligados à regulamentação do Processo Eletrônico, que merecem igualmente a atenção de todos aqueles comprometidos com o bom funcionamento da Justiça.


A Lei 11.419/2006 — lei especial que regulamenta o processo eletrônico em território nacional — contempla, de modo geral, soluções adequadas e justas para as peculiaridades jurídicas típicas dessa forma de tramitação dos processos. Em dois aspectos, no entanto, é necessário avançar.
O primeiro deles é o tratamento legislativo da hipótese em que o advogado se vê impossibilitado de cumprir determinado prazo processual por falta de conexão à internet. A questão tem duas vertentes: (i) o acesso à internet em si; (ii) problemas temporários que inviabilizam o acesso à rede.


A universalização do acesso à internet vem sendo tratado, como não poderia deixar de ser, como verdadeiro direito fundamental nos tempos atuais, ou, ao menos, como uma vertente atual e necessária do direito de acesso à informação e da liberdade de expressão. Significativo, a esse respeito, foi a referência feita recentemente por um Relatório Oficial da ONU à internet como direito humano fundamental.


A única regra contida na referida lei que busca proteger advogados e jurisdicionados sob tal aspecto é o artigo 10, parágrafo 3º, o qual condiciona a adoção compulsória do sistema de processo eletrônico à disponibilização gratuita de equipamentos adequados ao seu acesso por parte de advogados e jurisdicionados. O CNJ, aliás, já decidiu que tais equipamentos não devem ter em conta apenas a demanda de advogados e partes hipossuficientes, mas sim de todos os potenciais usuários do sistema, independentemente da condição técnica ou financeira.

A regra é positiva e já evitou, por exemplo, que a Justiça Federal do Rio de Janeiro tornasse obrigatório o peticionamento eletrônico sem a disponibilização suficiente de equipamentos aptos a esse fim.
Já quanto ao segundo aspecto do primeiro problema aqui apontado, ou seja, o tratamento dos problemas relativos ao acesso individual à internet, a lei precisa avançar, pois desconsidera aspectos relevantes da realidade brasileira. Explico.


O artigo 10, parágrafo 1º, da Lei 11.419/2006 dispõe que, no caso de o sistema de processo eletrônico do Poder Judiciário ficar indisponível por motivo técnico, os prazos ficam automaticamente prorrogados para o primeiro dia útil subsequente ao da solução do problema.


A regra está correta, pois advogados e jurisdicionados não podem arcar com as consequências negativas de obstáculos criados pelo próprio Poder Judiciário. Não obstante, é insuficiente. A lei não se preocupa, por outro lado, com as inúmeras situações de impossibilidade de acesso à internet (pressuposto necessário para o acesso aos sistemas de processo eletrônico) por fatores igualmente alheios ao controle do advogado.


É certo, por um lado, que a força maior é causa para suspensão do processo (art. 265, V, do CPC) e do prazo recursal (art. 507 do CPC). Mas a comprovação de tal circunstância pode ser um potencial foco de lesão a direitos fundamentais do processo, quando se trata de processo eletrônico. Fora dos grandes centros, nos rincões mais afastados do país, o acesso à internet está longe de ser generalizado e, mesmo nos grandes centros, não é estável o suficiente para deixar os advogados a salvo de preocupações, especialmente quando têm de cumprir um prazo fatal pela via exclusivamente eletrônica.


Evidentemente, o investimento em tecnologia é uma realidade inexorável para qualquer profissional, e não é diferente com relação ao advogado. Mas a insegurança na utilização dos sistemas de processo eletrônico milita, no mínimo, contra sua adoção espontânea.

Por esse motivo, é necessário o tratamento legislativo da prorrogação dos prazos processuais no caso, por exemplo, de falta de energia elétrica ou indisponibilidade de acesso à internet por problemas no provedor de acesso contratado pelo advogado. Evidente que, para isso, não bastará a mera afirmação do advogado, sob pena de se permitir atos protelatórios indesejáveis. No entanto, há que se estabelecer meios e hipóteses mais concretas e objetivas do que a vaga e abstrata força maior.


Por fim, há que se avançar em matéria de publicidade do processo eletrônico. O Conselho Nacional de Justiça já afirmou, em Procedimento Administrativo ajuizado pela OAB-RJ, que o acesso aos autos eletrônicos deve seguir o que dispõe o artigo 7º, XIII, da Lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e da OAB), ou seja, os sistemas devem permitir o acesso automático do advogado a qualquer processo, independentemente de procuração, desde que registrado o acesso.

O projeto do Novo Código de Processo Civil (art. 162, §2º do PL 8046/2010), estabelece o regime de sigilo dos processos que tramitem sob a forma eletrônica, independente de seu conteúdo. Trata-se, portanto, de grave retrocesso, com a repristinação, agora de forma até mais clara, de norma cuja interpretação literal já havia sido rechaçada pelo Conselho Nacional de Justiça.


A comunidade jurídica deve estar atenta a mais esses dois aspectos, os quais, a nosso ver, são críticos para a boa implementação do processo eletrônico.


Wadih Damous é presidente da OAB-RJ.
Revista Consultor Jurídico (01.12.2011)


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