Restrição à atividade dos motoboys é insconstitucional

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Um dos maiores problemas brasileiros é a falta de habilidade de nossas autoridades em resolver os problemas sociais que surgem com o tempo. Ao invés de aprimorar a qualidade do ensino, cria-se a aprovação continuada; ao invés de criar condições de emprego, criam-se programas sociais meramente assistencialistas; e assim poderíamos citar aqui diversos outros exemplos no mesmo sentido.
A temática em voga, mais especificamente na cidade de São Paulo, atinge categoria profissional que tem atraído ao longo dos anos para si olhares atentos e nem sempre amistosos da sociedade em virtude da difícil convivência no caótico trânsito da metrópole.
Dias atrás, a Assembléia Legislativa de São Paulo aprovou Lei Estadual que proíbe no âmbito estadual o transporte de passageiro em motocicletas de segunda a sexta-feira, como se assim pudesse solucionar ou ao menos minimizar os reflexos da insegurança pública entre nós instaurado.
Agora é a vez do município de São Paulo combater com remédio e dosagem nitidamente equivocados mal que nem sequer sabe como diagnosticar.
Foram publicadas esta semana no Diário Oficial do Município seis portarias da Secretaria Municipal de Transportes regulamentando os serviços de motofrete na Capital, normatização que já vem tardia e deve mesmo ser implementada com o objetivo de criar maior segurança e eficiência em serviço hoje de grande relevância, para não se dizer essencial.
O problema que ganhou vulto no noticiário nesta data não é a regulamentação em si que, como dito, embora tardia é bem-vinda.
O mal está em impor aos profissionais da área – os já segregados “motoboys” a pecha de malfeitores e pessoas nocivas à sociedade, na medida em que passa a Prefeitura de São Paulo a exigir certidão de antecedentes criminais como condição à autorização para o exercício da profissão.
A exigência viola de morte, já a princípio, princípios Constitucionais da razoabilidade da proporcionalidade.
O primeiro porque a existência de eventuais antecedentes criminais do condutor da motocicleta não tem por si só o poder de suspender seu direito de dirigir. O segundo porque não há qualquer estudo ou estatística que demonstre a rotineira prática de crimes por estes profissionais no exercício de suas funções.
A norma municipal lança por terra também a disposição contida no artigo 5º, inciso XIII, da Constituição Federal que assegura ser livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer, não exigindo a lei qualquer impedimento ao exercício da profissão de “motoboy” neste sentido.
O Código Brasileiro de Trânsito exige para os condutores de veículos de transporte de passageiros, em especial escolares, certidão negativa de registro de distribuição criminal relativamente aos crimes de homicídio, estupro e corrupção de menores, entendendo o Supremo Tribunal Federal, mesmo assim, que exigência semelhante somente pode ser admitida após o trânsito em julgado de eventual sentença condenatória, ou seja, quando contra ela não couber mais qualquer recurso.
A exigência em referência pode ser estendida apenas ao exercício da atividade de mototáxi, não podendo jamais se fazer valer em relação aos condutores de motocicletas utilizadas para o serviço de motofrete.
Mesmo que assim não fosse, as recentes Portarias Municipais — que têm força normativa, mas lei não são — extrapolam, como se vê, as exigências do próprio Código Brasileiro de Trânsito e consequentemente os limites de sua competência legislativa, já que formula exigências mais amplas do que aqueles reclamadas pela regulamentação Federal e que, de certa forma, ali se justificam por envolver o transporte de pessoas e o poder de direção do condutor do veículo, não fazendo o mesmo sentido quando se fala em motofrete.
Na esteira do determinado pelo Código de Trânsito, o Contran emitiu a Resolução 356, de 10 de agosto de 2010, com o objetivo de regulamentar, na esfera Federal, os requisitos para o exercício da atividade de “motoboy”, estabelecendo que o condutor deverá ter no mínimo 21 anos de idade, possuir habilitação na categoria “A” por pelo menos dois anos, ser aprovado em curso especializado e estar vestido com colete de segurança dotado de dispositivos ali especificados.
Nem mesmo a regulamentação Federal – bem se vê – traz em si a absurda exigência que passa a partir de agora a fazer a Prefeitura de São Paulo para o exercício de legítima e tão importante profissão no mundo contemporâneo.
E a competência legislativa neste caso é privativa da União, tal como disciplina o artigo 22 da Constituição Federal, em seus incisos I, V e XI, sendo proibido que o município crie normas e leis neste sentido que não encontrem respaldo em lei Federal pré-existente.
Não pode o município, por exemplo, exigir do médico, advogado ou engenheiro a exibição de certidão de antecedentes criminais para lhe condicionar a emissão de alvará de funcionamento de sua clínica, consultório ou escritório.
A mesma exigência não pode ser feita pela Prefeitura ao comerciante, cabeleireiro, construtor ou empresário que pretenda a emissão de autorização de funcionamento.
Inconstitucionais, portanto, se revelam as portarias recém editadas pela Secretaria de Transportes do Município de São Paulo, que agridem de maneira indelével até mesmo a dignidade da pessoa humana, sem qualquer justificativa razoável e relacionada ao exercício profissional em foco, se podendo concluir de maneira lamentável que a Prefeitura de São Paulo enxerga nos “motoboys” da cidade potenciais criminosos e, o que é pior, sem qualquer chance de reabilitação e reinserção social.
Não se pode negar que a atividade de motofrete tem contribuído nas grandes cidades brasileiras com o incremento de vagas de emprego e a forte movimentação da economia, não sendo menos certo que em grande parte das vezes tem sido este mercado o responsável pela absorção de mão-de-obra tecnicamente menos qualificada, sendo uma boa – senão a única – oportunidade de emprego aos cidadãos menos favorecidos seja por sua condição econômica, social, pela pouca idade, falta de estudo, ou mesmo como chance para uma requalificação digna, por que não assim se dizer.
Em tempos em que se prega a reinserção social como bandeira, até mesmo de publicidade Governamental, não é razoável que se impeça de trabalhar aquele que, por exemplo, responde a processo criminal por delitos de menor potencial ofensivo, aos condenados em que se aplicaram penas alternativas, aos que já cumpriram suas penas, deles retirando talvez a única possibilidade de manter de modo lícito o próprio sustento e de suas famílias.
A regulamentação municipal, portanto, além de incoerente e inconstitucional, reúne em um mesmo balaio cidadãos de bem e eventuais potenciais criminosos, maculando categoria profissional já alvo de inegável segregação social ao mesmo tempo em que retira sem qualquer justificativa plausível a possibilidade de reinserção social e de exercício de trabalho digno aqueles que necessitam prover de modo lícito o sustento de suas famílias.
A questão pontual abordada deve ascender luz sobre tema de grande importância e relevância e que está a merecer maior debate pela sociedade, qual seja, os limites do Poder Público nas regulamentações a que se lança e que, não raro, têm violado direitos e garantias fundamentais, estando em tempo de rediscutirmos os limites da intervenção Estatal na vida privada sem maiores justificativas e estudos técnicos que as autorizem.
Hoje foram os “motoboys”. Amanhã podem ser os jornalistas, advogados, médicos, padeiros, frentistas, despachantes, etc, exercitando o Estado em nosso sentir seu poder de modo exacerbado e, o que é pior, descontrolado.
Um último problema a ser abordado diz respeito ao âmbito de alcance da norma, na medida em que poderia atingir apenas e tão somente a trabalhadores do Município de São Paulo.
Uma empresa sediada em cidades vizinhas (Guarulhos, Osasco, Barueri, etc.) e seus respectivos trabalhadores, portanto, não estariam submetidos à norma municipal, não podendo a Prefeitura de São Paulo impedir que o cidadão contrate os serviços de motofrete de uma dessas empresas, ainda que o destino ou origem da entrega seja nos limites geográficos da cidade de São Paulo.
Mais uma razão para se identificar a morte precoce de uma norma recém-nascida e que reflete, mais uma vez, a falta de planejamento e coerência de nossas autoridades, que insistem em atacar problemas graves – como a da segurança pública, por exemplo – com soluções pueris, distorcidas e que violam direitos e garantias fundamentais do cidadão, em claro retrocesso a tempos que o Estado Democrático de Direito tem por dever sepultar.

Por Paulo Ricardo Gois Teixeira
Paulo Ricardo Gois Teixeira
é advogado especialista em Direito Civil e em Direito Processual Civil, sócio de Belizário & Gois Advogados Associados.

Fonte: Conjur - Consultor Jurídico (29.11.11)


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