Ilegalidade da e-Financeira e do Supremo

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A e-Financeira determina que toda pessoa física que movimente mensalmente valores acima de R$ 2 mil (para pessoas jurídicas esse valor sobe para R$ 6 mil) deve ter sua movimentação financeira informada à Receita Federal. É óbvio que essa informação será obtida junto ao sistema financeiro brasileiro, que está obrigado a prestá-la, seja a empresa financeira fiscalizada pelo Banco Central, CVM, Susep ou Previc.

Inicialmente o debate que se colocava era da inconstitucionalidade de sua exigência, feita pela Instrução Normativa nº 1.571/15, em face do sigilo fiscal previsto na Constituição.

 

Com o julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), essa alegação aparentemente cessou, em face da compreensão de que o assunto foi pacificado.

O STF não legitimou o livre acesso ao sigilo bancário do contribuinte. A regra permanece sendo o sigilo bancário

De fato, o STF reconheceu a constitucionalidade do artigo 6º da Lei Complementar nº 105/01, declarando que o direito fundamental à intimidade e à privacidade do contribuinte não tem caráter absoluto. Foi decidido, por maioria, que o sigilo bancário poderá ser quebrado sem ordem judicial, nos casos em que há processo administrativo fiscal instaurado, para apurar eventual ilícito tributário, conforme previsto no referido artigo.

 

Ocorre que uma leitura mais atenta da decisão demonstrará que o Supremo não legitimou o livre acesso ao sigilo bancário do contribuinte. A regra permanece sendo o sigilo bancário – mitigado, mas se mantém. A exceção decorre das hipóteses em que há processo administrativo instaurado para apurar ilícitos tributários, na qual deve ser assegurado ao contribuinte o direito de replicar as informações fornecidas pelas instituições financeiras, bem como ampla defesa para impugnar ou recorrer de eventual libelo fiscal, fundamentado em provas produzidas unilateralmente pela Receita Federal, conforme dispõe o inciso LV, do artigo 5º da Constituição.

 

O foco está em duas expressões: processo e motivação. Tanto a Constituição (art. 5º, LV), quanto a LC 105 (art. 6º), exigem que haja processo instaurado e motivo justificado para permitir a quebra do sigilo pelo Fisco da União, dos Estado e dos municípios.

Como exposto, o entendimento atual do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que o contribuinte tem o direito de não ter o seu sigilo bancário devassado sem o devido processo legal, seja administrativo ou judicial, e haver motivação para a quebra do sigilo.

 

Registre-se que a e-Financeira foi instituída com amparo no artigo 5º, da LC 105/01, porém extrapolou o que nela é estipulado, pois permite que as operações financeiras dos contribuintes sejam informadas sem a existência de qualquer processo administrativo fiscal e sem nenhuma motivação. Não há amparo legal para permitir que as operações financeiras dos contribuintes sejam informadas independentemente de qualquer indício de ilicitude tributária e sem qualquer processo, administrativo ou judicial. Isso é exigência da Constituição (art. 5º, LV) e da LC 105, art. 6º. Mas é o que o governo pretende com a e-Financeira.

 

Ao legitimar o livre acesso ao sigilo bancário do contribuinte, a e-Financeira permitiu o monitoramento constante das operações financeiras, sem que exista indícios de sonegação fiscal e processo administrativo ou judicial em curso, o que é ilegal.

Em decorrência disso, não se pode aceitar que a Receita Federal, parte integrante da relação jurídica tributária, solicite informações sobre operações bancárias, por meio de obrigação acessória instituída por ato administrativo, que viola o artigo 6º, da LC 105/01, e parte do pressuposto de que todas as pessoas físicas e jurídicas são sonegadoras. Ou "salafrários", como disse o Ministro Marco Aurélio.

 

A vontade de arrecadar não pode sobrepujar a lei, já que o artigo 37 da Constituição dispõe que a administração deverá obedecer, entre outros, o princípio da moralidade e da legalidade. E como o ato administrativo ultrapassa esses limites, deve ser submetido ao crivo do Poder Judiciário para que o mesmo decrete a sua invalidade e não mantenha em vigor norma infralegal que restringe direitos e garantias constitucionais, e que viola a LC 105/01.

O Poder Judiciário deve afastar o estado de exceção imposto pelo Fisco, que concentra poderes e ameaça a ordem constitucional democrática, com o discurso de realizar a justiça fiscal.

 

Recentemente, a 6ª Vara Federal de São Paulo, sob o argumento de que o STF considerou constitucional a quebra do sigilo bancário pela Receita Federal sem autorização judicial, manteve em vigor a Instrução Normativa que instituiu a e-Financeira. Na decisão, argumentou-se que essa norma tem como objetivo regulamentar o artigo 5º da LC 105/2001. Ledo engano; ela viola essa lei. O STF legitimou o acesso ao sigilo bancário somente nos casos em que haja processo instaurado para apurar eventual ilícito.

Na verdade, a despeito de mitigar o direito ao sigilo, a decisão do STF reforça a posição contra a exigência da e-financeira, pois só admite que o sigilo fiscal dos contribuintes seja devassado desde que exista fundamento jurídico e processo envolvendo o contribuinte. E não da forma rotineira como se pretende. É preciso estabelecer limites ao poder do Fisco.

 

Fernando Facury Scaff e Márcio Maués são, respectivamente, professor da Universidade de São Paulo, advogados e sócios do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

 

Por Fernando Facury Scaff e Márcio Maués

 

 

Fonte: Valor Econômico (06.04.2016)


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