Comida para o lixo é gargalo na segurança alimentar

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Falta de conscientização de consumo aliada ao pouco investimento em tecnologia sustentável gera mais desperdício

Quase metade dos alimentos produzidos no mundo nunca é ingerida. Ao mesmo tempo, quase metade da população mundial sofre com a insegurança alimentar. Ou seja, boa parte dos alimentos necessária para garantir a nutrição da cada vez mais crescente população (estima-se em 9 bilhões em 2050) já está na mesa, mas a fome e a conscientização estão em porções diferentes da bandeja.

Desperdício de alimentos na Ceasa. Aparência perfeita conta para consumidor. Foto: Alex Costa

O desafio é inicialmente posto à sociedade pela Organização das Nações Unidas (ONU), que declarou 2014 como O Ano Internacional da Agricultura Familiar, importante pilar para garantia da segurança alimentar.

Cerca de 3 bilhões de pessoas sofrem de algum tipo de insegurança alimentar, de acordo com a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). No Ceará, por domicílio particular, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) deu conta que, em 2010, de 2.066 domicílios pesquisados, 1.151 apresentavam algum tipo de Insegurança Alimentar (IA), enquanto 354 apresentavam nível moderado e outros 295, nível grave. Este é apenas um recorte de um grupo populacional bem maior em condições de sub e desnutrição.

Avanços, mas...


No Brasil, houve avanços: o País reduziu de 14,9% (1990 a 1992) para 6,9% (2010 a 2012) o percentual de subnutridos. Mas, ainda hoje, pelo menos 13 milhões de pessoas passam fome ou sofrem de desnutrição. Pode-se dizer que a discussão sobre a segurança alimentar é como reclamar da escassez de água com a torneira pingando. A primeira falta é de conscientização. A outra é de acesso.

De acordo com a ONU, segurança alimentar “é a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente à alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam social, econômica e ambientalmente sustentáveis”.

Divulgado em janeiro deste ano, o relatório “Global Food: waste not, want not” (“Comida Global: não desperdice, não queira”) alertou que entre 30% e 50% dos alimentos produzidos anualmente no mundo não são consumidos. Isso representa entre 1,2 e 2 bilhões de toneladas de comida. Feito pelo Instituto de Engenheiros Mecânicos do Reino Unido, o relatório aponta que o desperdício é consequência de uma série de problemas, entre eles a infraestrutura inadequada de transporte e armazenamento dos produtos, técnicas insatisfatórias de engenharia e agricultura e o consumismo desenfreado. Trocando em miúdos, o “olho gordo” de comprar mais do que se precisa.

E a conta não para por aí, afinal, gasta-se água e energia para produzir os alimentos - mais de 500 bilhões de metros cúbicos do recurso hídrico mais valioso vão para o ralo enquanto a comida desperdiçada vai para o lixo. Estamos, por meio da ONU, no Ano Internacional de Cooperação pela Água. Não à toa, a Organização colocou 2014 como o ano da Agricultura Familiar. Nas entrelinhas, a entidade aponta que se água produz alimentos, a agricultura familiar, de forma sustentável, pode representar economia de água e, finalmente, segurança alimentar.

Comitê

Para isso, foi criado um comitê de acompanhamento com a participação de 12 Estados-Membros. De acordo com a FAO, a Agricultura Familiar emprega, somente nos países do Mercosul, aproximadamente dez milhões de pessoas. No Brasil é responsável por 38% da produção agrícola e, ainda assim, gera 70% de todos os alimentos que vão à nossa mesa. Apesar disso, houve uma queda nos investimentos neste setor – basta comparar o orçamento 2012 do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA, R$5 bilhões) com o do Ministério da Agricultura (Mapa, R$17,2 bilhões).

Os investimentos públicos no desenvolvimento da agricultura caíram sobremaneira entre 1980 e 2007 na América Latina e Caribe - de 6,9% para 1,9%. A campanha da ONU é para tentar resolver um contrassenso.

Soberania

Não basta garantir o acesso aos alimentos em quantidade e qualidade. Ter variedade, ou melhor, o poder de escolha, é fundamental. Mas isso não se faz sem o respeito aos valores culturais e sociais. No Ceará, existem comunidades que, em plena seca, desenvolvem alternativas de convivência com Semiárido bem antes (quando existe) de apoios governamentais. Dessa forma, a comunidade de Caatingueirinha, em Potiretama, no Vale do Jaguaribe, nem parece que vive uma das piores secas. A situação não está nada boa, como na maioria dos pedaços de sertão, mas lá a produção orgânica de fundo de quintal, literalmente, tem garantido a segurança alimentar. Pelo menos 30 famílias da Caatingueirinha desenvolvem os quintais produtivos há mais de cinco anos.

Por conta própria, os agricultores familiares construíram a Casa de Sementes e garantem reserva até mesmo neste difícil período. Também adotaram o sistema agrossilvopastoril e participam do Programa Uma Terra Duas Águas (P1+2), da Articulação do Semiárido (ASA). A líder Antônia das Graças, conhecida como Gracinha, também cria animais no quintal. Não há desperdício. Todo o excedente é comercializado na feira livre da cidade.

Perdas
30% da comida produzida no mundo vão para o lixo sem ter sido ingerida, conforme relatório divulgado no Reino Unido. O percentual pode variar até 50%.


OPINIÃO DO ESPECIALISTA

Estratégias de Soberania Alimentar


Em 1990, Betinho afirmou: “Quem tem fome, tem pressa!” Sua frase ressoou, ganhou força, não apenas naquele momento, mas em diversos discursos realizados por representantes dos Governos em anos seguintes.

Entretanto, o debate sobre a questão alimentar por muito tempo ficou preso à pauta do acesso a alimentos em quantidade, qualidade e em variedade suficientes à sociedade, sendo este o grande desafio propagado nos programas governamentais de Segurança Alimentar.

Os movimentos sociais, especificamente a Via Campesina, a partir do ano de 1996, são os responsáveis por mudar os rumos dos ventos que sopravam nessa direção ao colocarem que era necessário se pensar não apenas na produção de alimentos, mas na Soberania Alimentar.

Esta consiste no direito dos povos a alimentos nutritivos e culturalmente adequados, acessíveis, produzidos de forma sustentável e ecológica e o direito das populações tradicionais de decidirem o seu próprio sistema alimentar e produtivo. A Agricultura Familiar Camponesa é a grande aliada para a efetivação dessa proposta. E sua implantação vem sendo efetivada por meio de estratégias de Soberania Alimentar independentes ou incentivadas por Organizações Não-Governamentais (ONG), redes formadas por elas, por universidades e também por instituições de pesquisa.

Podemos indicar as sementes crioulas (ou sementes tradicionais) e quintais produtivos como exemplos dessas estratégias de Soberania Alimentar que já estão fazendo a diferença em algumas regiões do Estado do Ceará.

Seja no Litoral, no Sertão Central ou de Canindé, vales do Curu e Aracatiaçu ou no Maciço de Baturité, experiências como essas têm garantido a autonomia do pequeno agricultor, contribuído para manter as variedades tradicionais adaptadas àquelas regiões, incentivando a soberania territorial das comunidades, possibilitando a diversidade de cultivos e o fortalecimento da organização dos sujeitos envolvidos.

O que se percebe, entretanto, é uma quantidade de ações governamentais voltadas para criar soluções localizadas, parciais e segmentadas, que secundarizam o fato que “a gente não quer só comida”, parafraseando a canção "Comida", de Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Britto (Titãs), que fez um grande sucesso na década de 1980.



Veículo: Diário do Nordeste


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